Entre Trincheiras Sonoras: A Arte Como Ato de Resistência Criativa!

Fotograme do filme “Je Vous Salue Sarajevo”, Jean-Luc Godard.

Em 1993, Jean-Luc Godard realizou um pequeno filme intitulado Je Vous Salue Sarajevo, uma reflexão poética e crítica sobre os processos de padronização da cultura de massa europeia, a partir de uma imagem da Guerra dos Balcãs (Bósnia), capturada pelo fotógrafo norte americano Ron Haviv. A única cena do filme acompanha um texto surpreendente e instigante, narrado pelo próprio Godard. Essa narrativa contém uma frase que é atravessada por um campo de forças quase em oposição: “cultura é a regra e a arte é a exceção”. A cultura enquanto consenso e a arte enquanto dissenso, denuncia que a cultura deseja a morte da exceção porque é exatamente na arte que habita a resistência contra as imposições de regras que constituem o próprio regime capitalista e seus códigos estabelecidos.

Frente a um mundo evidenciado pela barbárie e, transversalmente, imerso em redes globais, o videoarte de Godard se apresenta como uma experiência artística – ética e estética enquanto atitude política – que aponta a afirmação da diferença e da arte de viver (ou morrer) face aos dispositivos do consenso e da manutenção de poderes instituídos. Há, naquela cena de um cotidiano de guerra representado por um procedimento de montagem, uma denúncia e um gesto revelado pela própria visibilidade do ato.

A expressão de uma porosidade emergente que transita entre forças visíveis e invisíveis, se instala em fronteiras que revelam mecanismos capazes de aproximar e registrar o cenário de uma iconografia urbana, em pequenas dimensões e escalas. Essas zonas, mesmo nebulosas e massacradas por uma rotina perversa, se encontram na mira de prováveis espetacularizações midiáticas. Nesse processo, a arte seria capaz de capturar o ato, potencializar o afeto e deslocar a regra?

A arte, nesse sentido, pode ser entendida como um ato de transgressão. Transgredir ganha um sentido importante, pois, em diferentes modos e dimensões, fazer front ao que é imposto pelo sistema (incluindo todo tipo de artefato de vigilância, punição e submissão), é uma forma de resistência.

Na perspectiva de uma sociedade ainda pautada por uma hegemonia eurocêntrica, as cidades inseridas em redes internacionais de negócios, por exemplo, estão recheadas de arquiteturas luminosas e espaços de simulação criados à luz da glamourização da arte. Essa energia direcionada à criação de museus de cultura, hotéis requintados, condomínios fechados ou shopping centers, essas arquiteturas que participam desse tipo de projeto urbano, são quase sempre a regra nos territórios normatizados e controlados pelos poderes oficiais. E a exceção, a linha de fuga, o escape, a resistência, os espaços não codificados? Onde se encontram?

As micro ações advindas de uma micropolítica do cotidiano e a experiência da arte (exceção), nas suas mais diversas manifestações, são potentes ferramentas capazes de provocar rupturas frente aos enunciados normativos (regra) e, consequentemente, estimular novos fluxos de desejo e de emancipação.

É nas trincheiras da arte que se encontram os núcleos de resistência dos mais vigorosos ao rolo compressor da subjetividade capitalista. Não se trata, no entanto, de fazer dos artistas os novos heróis da revolução ou as novas alavancas da história, mas a arte evoca toda uma criatividade subjetiva e imprevisível que atravessa os povos e as gerações oprimidas, os guetos, as minorias, os nômades, os anônimos.

É exatamente aí que reside a potente resistência criativa aos padrões hegemônicos: nessa emergente fonte de energia e inventividade, advinda de uma multiplicidade de manifestações coletivas e de multidões que explodem a cada momento.

Pode-se apontar as lutas minoritárias (micro revoluções moleculares) como uma das principais tendências dos movimentos de resistência na contemporaneidade, em oposição à automação, à normatização, à codificação, à totalização e ao controle, ou seja, à axiomática capitalista e tudo àquilo que escapa ao sistema.

A música, por exemplo, tem a capacidade de captar forças, através de um bloco de sensações (perceptos e afetos) - tornar sonoras forças não sonoras. Assim como a pintura tem a capacidade de tornar visíveis forças não visíveis. Inventar formas, captar forças, vibrações e conversações sonoras – todas essas condições em sua máxima potência podem desencadear um devir sensível nas artes e provocar as mais intempestivas criações.

Entre criações e resistências, as diversas expressões e produções artísticas imbricadas nas artes do fazer, podem funcionar como dispositivos para encontrar as brechas de uma ação política eficaz. E assim, na desobediência civil, em energias pontuais, em curtos-circuitos, nas pequenas guerrilhas culturais em que se faz a disputa dos sentidos, é que o papel dos artistas pode coexistir com essa força que vem das multidões: não mais abrir portas, mas fabricar ferramentas para que cada um possa abrir as suas próprias portas.

Ariadne Moraes

Ariadne Moraes, nascida em Maringá-PR, desembarcou em terras soteropolitanas no início da década de 1980. É arquiteta e urbanista, além de professora e pesquisadora da Faculdade de Arquitetura da UFBA. Ex-produtora e agitadora cultural, foi integrante do coletivo de hipermídia Soononmoon e uma das fundadoras da extinta Rádio D’arq, a primeira rádio universitária da UFBA. Amante das artes e da natureza, transita entre a filosofia, a micropolítica e a resistência criativa!

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