Das Garagens às Ruas.

Ilustração: Rogerio Rios

No começo era a garagem, que já estava por aqui quando chegamos. Pousaram algumas caixas e outros apetrechos eletrônicos com seus emaranhados de tentáculos coloridos enraizando-se pelo chão e paredes. Uma movimentação atípica tomou o ambiente. Alguém gritou - Três! Quatro! - e o pau comeu. Barbudos ensandecidos agitavam seus instrumentos, gritavam, gesticulavam horrores. Tudo era som naquele espaço bolorento e irreconhecível de outrora. E chamaram por banda o bando, sorvendo sem medida a bebida, a amizade e a música, a qual chamaram de rock'n roll.

A história de minha turma, repetida cidade afora com outros personagens não tão diferentes, pode ser a da sua. Junta uns pós-adolescentes oitocentistas e umas guitarras e vê o que vai dar. A garagem pode ser um quarto, uma laje ou até mesmo um estúdio pago (mas aí não dá pra beber). Pode ter menina grande e pequena - afinal os roqueiros também se reproduzem - amigo que não toca ou acha que toca, baterista de improviso, enfim, vale tudo pra gerar uns decibéis de pista de aeroporto num espaço suarento.

Nossa garagem era uma ilha onde vivíamos a ilusão de “nos sabermos sós, sem estarmos sós”. E no entanto, havia um arquipélago em nosso entorno sem que houvesse ainda um sentimento de pertença. Outros tantos também nos ignoravam enquanto animavam festas para amigos e cunhados.

Felizmente, bons ventos deixaram terra à vista. Uma bandeira monocromática se ergueu com um pretensioso nome: Bons Sons. E ainda lhe deram o título de clube. Meia dúzia de aventureiros lançando cordas e criando pontes. Em seguida veio o canto da sereia: uma Jam Session de rock! Como assim?! Deixa ver só...

De um dia para outro a garagem ficou pequena, desceu a rua e abraçou a cidade. Qual foi meu espanto ao ver as caixas, cabos e equipamentos de som de minha pequena banda Cyria na grama da avenida, plugados por caras cujos corações pulsavam como o meu.

Testemunhei algo grandioso nascer e crescer a partir da iniciativa e perseverança de uns jovens de meia idade, que transpiraram muito para inspirar doidos como eu a continuar tocando.

Improvisei na Jam, ouvi discos antológicos e trabalhos autorais, escrevi textos e conheci gente demais, recém saída de suas garagens. O rock envelheceu, é certo, mas só envelhece quem não morre. Na cidade da ditadura da alegria, visto um preto desbotado e volto a respirar bons ares.

Desejo que essa inquietude produtiva permaneça soprando a vela do Clube dos Bons Sons, como agora, nessa nova empreitada do blog. É mais um canal para nos dar voz e vez, a mostrar que ficamos mais fortes quando juntos estamos. O Clube é a aposta no poder da coletividade; é o overdrive na linha e a garagem na rua.

Gilberto Filho

Músico acidental e contador de histórias Inverossímeis.

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