Canção da Despedida

Ilustração: Rogerio Rios

A melodia aguda de um violino conduzia o cortejo fúnebre em sua marcha triste. O contraponto das notas musicais tocava fundo nos corações e aguava os olhos de saudade. Àquela hora o sol iluminava com brandura e nem mesmo os pássaros distraídos ousariam furtar nossa atenção às mais belas canções.

​Até o último instante a música nos acalenta. Ela, que por tantas vezes foi motivo de festa, dança, riso, revela-se com delicadeza na hora da partida. Mais que ouvida, ela é sentida pelo povo silente, parecendo marcar seus passos sem pressa entre tantos túmulos. Sigo junto, cheio de lembranças de minha querida amiga.

​Foi na casa dela, mais precisamente na laje sem reboco, que fiz os primeiros ensaios com o baixo recém-comprado. Ideia de seu filho Félix, amigo e percussionista de primeira viagem: “Minha mãe deixa!” Tiramos os restos de construção do caminho e tomamos posse do lugar, enchendo o chão de gambiarras, tambores e caixas de som. Imagina a barulheira que fazíamos logo acima de sua cabeça. No entanto, ela sorria e acolhia seus novos filhos mandando um suco com biscoito vez em quando.

​Como todo músico iniciante, a gente devia tocar mal pra cacete. Mas éramos inofensivos já que não tinha nenhum show pra fazer. Isso até alguém arrumar umas tocadas para o São João. Daí porque a laje foi providencial.

​A casa era repleta de festas animadas. Às vezes eu protagonizava com o violão maltratado de Félix, apelidado jocosamente de lixolão, dado seu estado de conservação e afinação impossível. Diferente do repertório da banda, o rock dominava a cena. Dona Preta sorria e, como uma mãezona, tratava de encher nosso bucho com algo sólido.

​O ambiente era repleto de símbolos religiosos e esotéricos. Era Jesus ao lado de Buda, livro de umbanda com revista de horóscopo, São José, mandalas, chifre, bíblia, Exu, tudo misturado. Já ri muito daquela confusão, que só se desfazia quando, quintal adentro, os objetos sagrados do candomblé reinavam absolutos. Entre um caruru e outro, sempre sorridente, ela renovava o convite: “Venha comer do meu dendê, que você não chuta minha farofa.”

​E eis que Omulu soprou o tempo até esta tarde resignada, onde coube a um violino remoçar estas memórias. Louvadas sejam essas notas. Fosse um tapa seco na pele de um atabaque, certeza, também iria reverberar aqui dentro. Sons e silêncio sincronizam-se na ciranda da vida.

​O olhar não dá conta de tanto sentimento, recolhendo-se embaçado. Lá fora um cântico católico é entoado por velhas senhoras, caindo como um bálsamo sobre nós. Saravá, amém, namastê, shalom. A oração se cala respeitosa e a melodia suspira serena em meu ouvido: a música é a voz de Deus.

Gilberto Filho

Músico acidental e contador de histórias Inverossímeis.

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