Muro da Salvação
Salvador. Terça-feira, abril 17, 2012, 06h30
A arte é um curral e o meu trabalho é procurar estercos.
Eu sou um ser solitário. Um intermediador dos deuses do restauro. Meu nome é Andrew Martin, artista plástico, escritor, historiador, biólogo, especialista no cultivo de tabaco em plantas hidropônicas, inventor e pesquisador. Mas, principalmente, sou ativista e luto pelos direitos civis. Por alguns anos me dediquei à análise de edifícios decadentes e na relação destes com os seus residentes. Interessava-me pela degradação da vida urbana em face de uma morte pré-anunciada e lenta. Meu pai trabalhou na construção de imponentes símbolos arquitetônicos durante o Terceiro Reich e através dele tive as primeiras impressões de um confronto inevitável: nossa condição de seres mortais!
Seres que deambulam por caminhos determinados e, ao mesmo tempo, seguem ao irremediável túnel da morte; situação que meu pai chamava de “eternos nômades errantes” ou “potenciais fantasmas”, pelo intenso contato que manteve com almas que recusavam reconhecer a própria morte. Estive também por um período ligado a divisão de Arte-Crime, fundado por Nathan Adler em Londres, até adquirir a minha independência e partir para a cidade de Salvador, onde resido desde o carnaval de 2000.
Como nasci de forma pré-matura a bordo de um voo da British Airways, que partia de Londres em direção à Boston, tenho muitas dúvidas sobre a minha nacionalidade. Costumo me intitular como cidadão do mundo. Foi ali no Gravatá que estabeleci meu primeiro contato com homens de corpos curvados e maltratados.
Toda uma vida de corpos invisíveis e de vozes que não ecoam em um tecido de cidade completamente abandonado pelo Estado. Fiquei atordoado com a quantidade de campanhas publicitárias aterrorizantes e discursos autoritários que mais estigmatizam os consumidores de crack do que qualquer outra coisa. Na noite anterior, um grupo de agentes imobiliários havia espalhado panfletos mapeando todas as áreas da cidade onde havia maior consumo da droga, onde se lia: “percursos marginais dos nóias”. No mapa havia uma concentração significativa nas áreas centrais de Salvador.
Uma professora da faculdade de arquitetura me falou que tais estratégias estão sendo realizadas no sentido de desvalorizar certas áreas da cidade para que os preços dos imóveis despenquem. Com isso, algumas corporações têm acesso facilitado à terra, comprando sobrados antigos em massa a preços módicos exatamente nas regiões mais afetadas pelo consumo. Isso gera uma polarização entre requalificação e deterioração, pois parte desses territórios sofre, posteriormente, processos de gentrificação e intervenções espetaculares, legitimando a implantação de empreendimentos de caráter especulativo. Como acontece na região da Nova Luz, em São Paulo, os mapeamentos revelam estratégias de intervenção urbana voltadas à criação de espaços sujeitos a forte valorização imobiliária.
Naquela manhã, porém, eu estava embriagado por outra cartografia. Uma cartografia das sensações misturada com cheiro de plástico queimado. Ao longo da rua do Gravatá, logo cedo, havia cerca de 40 pessoas fumando nas calçadas de formas diferenciadas. No cachimbo ou na lata de alumínio, a pedra é queimada por cima de cinzas de cigarro. No copo descartável, os usuários inserem água com objetivo de impedir a aspiração das partículas sólidas existentes na fumaça. Ao colocar a pedra em combustão, adiciona-se querosene e solução de bateria de automóvel, potencializando o efeito e exalando um cheiro forte. Em poucos minutos, a rua se transformou em um ambiente de pura paranoia a céu aberto.
Em sua maioria homens entre 16 e 30 anos perambulavam pelos passeios, para lá e para cá, e sentavam-se nos portais das ruínas. Consumiam mais e mais a cada momento. Seus corpos sujos e magros eram revestidos de cicatrizes e tatuagens malfeitas. Um jovem de dentes quebrados começou a passar muito mal, com crises de calafrios, tonturas, dores no peito e vômitos constantes. Um pequeno grupo de mulheres parecia estar em processo de alucinação: gargalhavam, choravam e se contorciam ao mesmo tempo.
De repente, aquele rapaz que eu havia encontrado na sexta-feira passada surge de um dos casarões. Ele estava com um grupo de crianças e adolescentes e traziam nas mãos luvas, máscaras, suportes de stencil e um arsenal de spray de cores variadas. Era um grupo de grafiteiros ou pichadores, com certeza.
Em comunhão, começaram a desenhar nos muros de forma frenética. Foi uma das cenas mais lindas que eu havia presenciado nos últimos tempos. O sol brilhava a pino e, como numa sintonia, a garotada começou a esboçar e compartilhar processos simultaneamente. Cenas autônomas iam surgindo, outros grafiteiros se incorporavam ao grupo, transeuntes e curiosos paravam para observar aquela cena autônoma.
A rua se transformou em um espaço de intenso trabalho de arte, onde os desenhos se entrelaçavam e se complementavam ao ponto de preencher, em poucas horas, toda a extensão daquele “muro da salvação”. Até um senhor, que morava nas ruas e catava lixo, se incorporou àquele processo: pegou um dos sprays e começou a fazer faixas e mais faixas. Aquela rua, então, transmutou de cenário de delírio, tristeza e dor, para um espaço híbrido e afetivo.
A arte e a pulsação de corpos vibráteis traçando cartografias de escape, através do uso do espaço público como arena de expressão coletiva. Aquele território estava sofrendo outra demarcação cartográfica. Não há como se ajustar a uma sociedade desorientada. - A revolução somos nós! Gritou o líder e poeta errante. E continuou: – Eu sou um enviado de Joseph Beuys! Estou aqui para multiplicar táticas e ampliar a comunicação entre as pessoas. Obviamente que ninguém compreendeu nada do que aquele moço falava, mas eu recebi como um soco no meio do meu estômago o seu recado. E sussurrei, baixinho: esse deve ser um compromisso social de todos nós! A cidade tem a potência de ser educativa nela mesma, através de estratégias multiplicadas. Lembrei repentinamente de uma citação de Lygia Clark: pássaros e leões nos habitam! O delírio, a urgência da catástrofe, um sinal dos anjos. Pensei nos fantasmas de meu pai, na realidade, na utopia, na ficção - tudo se sobrepõe. A magia, o encanto, a letargia, a auto aversão, o sofrimento, a cura e a redenção.