No infinitivo presente
Azougue, por Azimute Pi
O movimento de descobrir o que permaneceu depois de uma grande onda e seu não menor refluxo, do que está de pé apesar da transmutação da onda em outras matérias, quando tudo parece que se tornou distante e engana por criar a impressão de que não mais nos atinge, mas está ali mantendo a insegurança de pequenos terremotos que mesmo assim derruba edifícios em concreto armado mal construídos e também alguns bens construídos. O que ainda permanece aponta para espaços e cômodos vizinhos ao que se está, não é exatamente impávido, mas indica um presente que precisa ser revelado, que precisa reabrir passagens para o conhecido que andou submergido, quase esquecido, e que insiste, e assim ser renovadamente presente.
É imperativo estar atento, canta Blera, à frente do coletivo Azimute Pi – o grupo de músicos responsáveis por este disco não se define como uma banda, é mais precisamente um encontro para este projeto – na canção que estrutura o disco encerrando um seu imaginário lado A. O que se escuta até ali são cinco canções da construção de memória para o futuro, do que ficou e foi cuidadosamente escolhido, levantado, preparado para elaborar um ambiente que se abre cuidadosamente a traços em perspectiva compostos pelas quatro canções que se seguem. O ambiente, entretanto, é único, tem aberturas em duas orientações distintas, abrem-se as janelas, o vento passa, as cortinas avançam pelas varandas de um lado, enquanto o outro recebe o sol.
Azimute Pi tem em Júnior Vaz sua figura central, à frente da produção, direção musical, mixagem e mais algumas outras tarefas, além de dividir as guitarras com Lucas Kelsch; a concepção deste ambiente musical tem sua assinatura. Mas Azougue é um encontro musical que tem na voz de Blera seu fio condutor e, como é recorrente em primeiros discos de uma cantora, este não escapa a uma função elementar: apresentar seus alcances, apontar potenciais, vislumbrar caminhos. Blera abre-o navegando soberanamente em De Novo a Vida, sua voz cria uma linha estável, segura que irá manter nas duas canções seguintes, Ebulição e Você Precisa Falar com Alguém: há um sutil contraste entre o domínio vocal, sua suavidade, e as variações, de instrumentos e rítmicas, dos arranjos, ricos, sofisticados. Se estas três canções abrem uma possiblidade de entender o trabalho a partir de uma base da MPB combinável com hip hop ou rock, Você Precisa... é uma canção com um potencial para ser apresentada ao vivo em uma versão bem mais pesada, com guitarras bem mais incisivas, definitivamente rock and roll: Júnior Vaz aqui segura a energia da canção com a segurança de quem sabe exatamente o que pode fazer dela em show. Dueto em Quinta abre outra sala musical: o virtuosismo nas notas mais altas no canto, combinado com uma excelente surpresa na mudança da condução rítmica, aproxima-a dos melhores registros do namoro entre o jazz feito no Brasil e a Música Popular a final dos anos de 1970. Seja Breve e Sempre traz a cantora no melhor formato indie, interpretando com precisão e convencimento a melancolia do arco que vai dos ingleses dos anos 80 à música de boygenius.
Seja Breve é então o ponto de partida para uma sequência de quatro canções que, de uma maneira ou outra, são mais abertas, trazem relações mais explícitas com a música brasileira das últimas duas décadas, com grande destaque para Ying e Yang, onde é possível sentir o domínio rítmico e toda a desenvoltura e carisma da cantora. Entre as guitarras de Pouso Rarefeito, a batida eletrônica de Terapia do Amor Perfeito – um ótimo contraponto na construção do disco – e a percussão elaborada de Os Sinos Dobram, o disco apresenta como um todo uma sonoridade mais solta, mais versátil, e, porque não dizer, abraça e lança uma Blera mais pop.
Refinado ao articular em uma ambiência precisa tão distintas referências, Azougue é um norte e uma abertura segura para vôos futuros mais arriscados de Blera, com seu timbre único e seus alcances amplos. Azimute Pi consolida a maturidade musical do seu produtor; é um trabalho seguro, articulado, bem definido na sutileza do tratamento de cada elemento (prestem atenção nas maneiras como o baixo de Márcio Icó acompanha cada canção!). Para ambos, Blera e Azimute Pi, a próxima porta está indicada na canção Ebulição, entre a astúcia, falta de pudor, o sonho. O vento é seguro, as cortinas esvoaçam.